14out14
Gostaria de desmistificar alguns
pontos sobre a crise hídrica
em SP, assunto que tangencia minhas pesquisas
acadêmicas.
1- “Não choveu e por isso está
faltando água”. Essa conclusão
é cientificamente problemática. Existem períodos
chuvosos
e de estiagem, descritos estatisticamente. É natural que isso
ocorra.
A base de dados de São Paulo possibilita análises
precisas desde o século XIX e
projeções anteriores a partir
de cálculos matemáticos. Um sistema de abastecimento
eficiente precisa ser projetado seguindo essas previsões
(ex: estiagens que
ocorram a cada cem anos).
2- “É por causa do aquecimento
global”. Existem poucos
estudos verdadeiramente confiáveis em São Paulo. De
qualquer forma, o problema aqui parece ser de escala
de grandeza. A não ser que
estejamos realmente vivendo
uma catástrofe global repentina (que não parece ser
o
caso esse ano), a mudança nos padrões de chuva não atingem
porcentagens tão
grandes capazes de secar vários reservatórios
de um ano para o outro. Mais
estudadas são as mudanças
climáticas locais por causa de ocupação urbana
desordenada.
Isso é concreto e pode trazer mudanças radicais. Aqui o
problema é
outro: as represas do sistema Cantareira estão
longe demais do núcleo urbano
adensado de SP para sentir
efeitos como de ilha de calor. A escala do
território é
muito maior.
3- “Não choveu nas Represas”. Isso é
uma simplificação
grosseira. O volume do reservatório depende de vários
fluxos,
incluindo a chuva sobre o espelho d’água das represas.
A chuva em regiões de
cabeceira, por exemplo, pode
recarregar o lençol freático e assim aumentar o
volume
de água dos rios. O processo é muito mais complexo.
4- “As próximas chuvas farão que o
sistema volte ao normal”.
Isso já é mais difícil de prever, mas tudo indica que
a
recuperação pode levar décadas. Como sabemos,
quando o fundo do lago fica
exposto (e seco), ele
se torna permeável. Assim a água que voltar atingir
esses
lugares percola (infiltra) para o lençol freático,
antes de criar uma camada
impermeável. Se eu fosse
usar minha intuição e conhecimento, diria que São
Paulo
tem duas opções a curto-médio prazo: (a) usar fontes
alternativas de
abastecimento antes que possa voltar
a contar com as represas; (b) ter uma
redução drástica
em sua economia para que haja diminuição de consumo
(há
relação direta entre movimento econômico e consumo
de água).
5- “Não existe outras fontes de
abastecimento que não as
represas atuais”. Essa afirmação é duplamente
mentirosa.
Primeiro porque sempre se pode construir represas em
lugares mais e
mais distantes (sobretudo em um país com
esse recurso abundante como o Brasil)
e transportar a água
por bombeamento. O problema parece ser de ordem
econômica
já como o custo da água bombeada de longe
sairia muito caro. Outra mentira é
que não podemos usar
água subterrânea. Não consigo entender o impedimento
técnico disso. O Estado de São Paulo tem ampla reserva
de água subterrânea
(como o chamado aquífero Guarani),
de onde é possível tirar água, sobretudo em
momentos de
crise. Novamente, o problema é custo de trazer essa água de longe
que afetaria os lucros da Sabesp.
6- “O aquífero Guaraní é um
reservatório subterrâneo”.
A ideia de que o aquífero é um bolsão d’água, como
um
vazio preenchido pelo líquido, é ridiculamente equivocada.
Não existe
bolsão, em nenhum lugar no mundo. O aquífero
é simplesmente água subterrânea
diluída no solo. O aquífero
Guaraní, nem é mesmo um só, mas descontínuo. Como
uma
camada profunda do lençol freático. Em todo caso, países
como a Holanda
acham o uso dessas águas tão bom que parte
da produção superficial
(reservatórios etc) é reinserida no
solo e retirada novamente (!). Isso porque
as propriedades
químicas do líquido são, potencialmente, excelentes.
7- “Precisamos economizar água”.
Outra simplificação.
Os grandes consumidores (indústrias ou grandes
estabelecimentos,
por exemplo) e a perda de água por falta de manutenção
do
sistema representam os maiores gastos. Infelizmente os
números oficiais parecem
camuflados. A seguinte conta nunca
fecha: consumo total = esgoto total + perda
+ água gasta
em irrigação. Estima-se que as perdas estejam entre
30% e 40%. Ou
seja, essa quantidade vaza na tubulação
antes de atingir os consumidores. Água
tratada e perdida.
Para usar novamente o exemplo Holandês (que estudei),
lá
essas perdas são virtualmente 0%. Os índices elevados
não são normais e são
resultados de décadas de maximização
de lucros da Sabesp ao custo de uma
manutenção precária
da rede.
8- “Não há racionamento”. O governo
está fazendo a mídia
e a população de boba. Em lugares pobres o racionamento
já
acontece há meses, dia sim, dia não (ou mesmo todo dia).
É interessante notar
que, historicamente, as populações
pobres são as que sempre sentem mais esses
efeitos (cito,
por exemplo, as constantes interrupções no fornecimento
de água
no começo do século XX nos bairros operários das
várzeas, como o Pari). A
história se repete.
9- “É necessário implantar o
racionamento”. Essa afirmação
é bem perigosa porque coloca vidas em risco. Já
como
praticamente todas as construções na cidade têm grandes
caixas d’água, o
racionamento apenas ataca o problema
das perdas da rede (vazamentos). É tudo
que a Sabesp
quer: em momentos de crise fazer racionamento e reduzir
as perdas;
sem diminuição de consumo, sem aumentar o
controle de vazamentos. O custo
disso? A saúde pública.
A mesma trinca por onde a água vaza, se não houver
pressão
dentro do cano, se transformará em um ponto de entrada
de poluentes do
lençol freático nojento da cidade. Estaremos
bebendo, sem saber água poluída,
porque a poluição
entrou pela rede urbana. Por isso que agências de saúde
internacionais exigem pressão mínima dentro dos canos
de abastecimento.
10- “Precisamos confiar na Sabesp
nesse momento”.
A Sabesp é
gerida para
maximizar lucros dos acionistas.
Não está preocupada, em essência, em
entregar um serviço
de qualidade (exemplos são vários: a negligência
no
saneamento que polui o Rio Tietê, o uso de tecnologia
obsoleta de tratamento de
água com doses cavalares
de cloro e, além, da crise no abastecimento decorrente
dos pequenos investimentos no aumento do sistema de
captação). A Sabesp é
apenas herdeira de um sistema
que já teve várias outras concessionárias:
Cantareira Águas
e Esgotos, RAE, SAEC etc. A empresa tem hoje uma
concessão de
abastecimento e saneamento. Acredito
que é o momento de discutir a cassação
dessa outorga,
uma vez que as obrigações não foram cumpridas. Além,
é claro, de
uma nova administração no Governo do Estado,
ao menos preocupada em entregar
serviços público e não
lucros para meia dúzia apenas.
Enfim, se eu pudesse resumir minhas
conclusões: a crise
no
abastecimento não é
natural, mas sim resultado de uma
gestão voltada para a maximização de lucros da concessionária
e
de um Governo incompetente.
Simples assim, ou talvez,
infelizmente, nem tanto.
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da USP;
desenvolveu mestrado em Gerenciamento Hídrico
no UNESCO-IHE (Holanda),
onde pesquisou as origens
históricas das enchentes em São Paulo.
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