A economia nas Escrituras.
Artigo de Gianfranco Ravasi
A economia é uma ciência humanística, sendo a regra de gestão (nómos) da casa (oíkos) pessoal,
familiar e mundial. A koinonia, termo grego que indica a "comunhão fraterna"
dos bens, uma espécie de "comunismo" ideal, modelado sobre a repartição dos pertences
entre todos os membros da comunidade segundo critérios de igualdade absoluta.
A opinião é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo
publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 17-11-2014. A tradução é de Moisés
Sbardelotto.
Eis o texto.
Somos sobreviventes de uma fase em que o termo "finanças"
tornou-se sinônimo de "economia" com uma operação reducionista de
efeitos deletérios, destinada, em última instância, a confundir meios e fins,
instrumento e projeto.
De fato, como se registra até em nível filológico, a economia é uma
ciência humanística, sendo a regra
de gestão (nómos) da casa (oíkos)
pessoal, familiar e mundial. A consequência dessa finalidade que torna o
horizonte da economia muito mais amplo do que a mera funcionalidade
instrumental das finanças é o contato necessário com a antropologia, a ética e
até mesmo com a religião.
Como escrevia Amartya Sen no seu famoso livro Etica ed economia (Ed. Laterza,
1988), "a separação da economia da ética é um empobrecimento da economia,
cujo leito original deveria ser a filosofia moral, terreno em que muitos
economistas temem avançar".
Com estatutos metodológicos diferentes e, portanto, com uma
operacionalidade própria, economia e religião devem se pôr a partir de
angulaturas diferentes a serviço
da humanidade. Isso é o que é afirmado repetidamente nos documentos
pontifícios mais recentes como a Caritas in veritate (2009),
de Bento XVI, e a Evangelii gaudium (2013), do Papa
Francisco, e é isso que é elaborado em vários ensaios de índole teológica.
O cristianismo, a esse respeito, está particularmente envolvido por
causa da sua matriz estrutural que tem no seu centro a "encarnação" pela
qual Deus e homem, em Cristo e na Igreja, são profundamente unidos por um
projeto de justiça e de amor. Ele é denominado na linguagem simbólica bíblica
de "o reino de Deus", uma categoria não teocrática, mas
histórico-espiritual.
Por isso, como escrevia Chesterton sugestivamente, "toda a iconografia cristã
representa os santos com os olhos abertos sobre o mundo, enquanto a iconografia
budista representa cada ser com os olhos fechados" na contemplação
interior.
O ponto de partida para a reflexão essencial que agora propomos nos é
oferecido por dois livros interessantes, embora de recorte diferente. De um
lado, colocamos um verdadeiro rastreio sistemático, histórico-crítico e hermenêutico da ética econômica própria das Sagradas
Escrituras judaico-cristãs. Elas são analisadas nesse ensaio tanto em
nível diacrônico – e, portanto, segundo um arco evolutivo que, do Israel
bíblico, chega ao cristianismo judaico-cristão e paulino –, quanto em um olhar
sincrônico final, em que se reúnem os nós permanentes da questão.
Eles dizem respeito ao juízo não unívoco sobre o bem-estar, a gratuidade
do dom divino, a reciprocidade na caridade, a relação de cuidado com a criação
e os seus bens, e o clássico tema da providência. Quem esboça esse desenho
textual e sistemático é o professor de teologia e economia do Providence
College (Rhode Island, EUA), Albino Barrera, que já tem às suas costas uma
ampla bibliografia sobre o assunto.
De outro lado, remetemos a um texto mais móvel e direto: trata-se de um
diálogo entre um renomado biblista envolvido em nível pastoral eclesial e de
solidariedade internacional, Giuseppe Florio, e um importante e animado economista da
universidade romana de Tor Vergata, Leonardo Becchetti.
Este último se expressou várias vezes, de modo incisivo e original,
sobre o nexo entre ética e economia, não temendo avançar também no horizonte da
felicidade entendida como porto não marginal da própria práxis socioeconômica.
O frescor do debate entre dois especialistas de disciplinas diferentes,
mas não alheias entre si, torna esse texto muito agradável. Por sorte, não são
poucos os economistas e os teólogos que, nesses últimos tempos, se assomam para
além das suas cercas de fronteira para dialogar: gostaria apenas de assinalar a
preciosa e sugestiva contribuição do economista Luigino Bruni, da Libera Università Maria
Santissima Assunta (Lumsa), de Roma, sobre cuja pesquisa poderemos
intervir no futuro.
Mas voltemos à nossa consideração de índole geral sobre as próprias
fontes da fé cristã. Em nível estritamente histórico-crítico, muitos estudiosos
se preocuparam em reconhecer as coordenadas socioeconômicas dentro das quais se
desdobrou a história do Israel bíblico ou a do cristianismo, adotando esquemas
interpretativos também heterogêneos (marxistas ou liberais). Lembramos apenas
uma interessante Sociologia
do cristianismo primitivo, publicada em 1979 pelo alemão Gerd
Theissen (Ed. Queriniana, 1987).
Certamente, a Bíblia revela diversos modelos
sociopolíticos ligados aos condicionamentos históricos e às várias
reivindicações que se queria testemunhar. É o caso da experiência vivida pela
comunidade cristã das origens e exaltado por Lucas nos Atos dos
Apóstolos. Ela é definida como koinonia, termo grego que indica a "comunhão fraterna"
dos bens, uma espécie de "comunismo" ideal, modelado sobre a
repartição dos pertences entre todos os membros da comunidade segundo critérios
de igualdade absoluta.
O ponto de referência era o apelo do livro bíblico do Deuteronômio:
"Não haverá
necessitados entre vocês" (15, 4); mas também o eram certas
experiências de partilha dos bens presentes no judaísmo (a comunidade de Qumran,
no Mar Morto) e no próprio mundo pagão (pitagóricos e estoicos).
Justamente Friedrich
Engels salientava que essa práxis hierosolimitana não era
equiparável à proposta marxista, sendo diferentes as motivações de fundo.
Na base do projeto cristão – que, aliás, era possível em uma sociedade
restrita e economicamente simplificada –, havia, de fato, a fé comum no mesmo
Deus, cuja paternidade nos torna todos filhos seus e irmãos entre nós. Havia o
reconhecimento da necessidade que todos têm da salvação, para a qual não
existem privilegiados, e havia uma relativização dos bens materiais em relação
ao valor supremo da justiça e do amor.
Sobre o tema da política e da economia, Cristo tinha reiterado,
em nível geral, esses valores, sem propor modelos concretos. No entanto, ele
tinha afirmado a distinção das esferas na célebre frase: "Dai a César
o que é de César e a Deus o que é de Deus" (cf. Mc 12, 13-17). Mas tinha
lembrado, com o símbolo da "imagem" que, se é verdade que a moeda
traz a "imagem" de César e, portanto, tem uma autonomia legítima
própria, o homem é sempre "imagem" de Deus e não pode ser curvado ao
serviço último da economia ou da política. Por isso, já os profetas haviam
levantado bem alto a sua voz de protesto contra as injustiças, e assim também
fizeram Cristo e a Igreja (veja-se o Apocalipse).
Em síntese, podemos adotar também para o cristianismo a concepção
"simbólica" que tentar manter em diálogo ética e economia, mesmo na
especificidade dos seus âmbitos, concepção formulada em nível geral por Gandhi:
"O homem se destrói com a política sem princípios, com a riqueza sem
trabalho, com a inteligência sem sabedoria, com os negócios sem moral, com a
ciência sem humanidade, com a religião sem fé, com o amor sem o sacrifício de
si mesmo".
·
Albino Barrera. Biblical
Economic Ethics. Plymouth: Lexington Books, 354 páginas.
·
Leonardo Becchetti; Giuseppe Florio. Dio
e mammona. Introdução de Mario Toso e Loretta Napoleoni. Roma: Ecra
·
(Edizioni del Credito Cooperativo),
144 páginas.
Para ler mais:
·
10/09/2014 - Ravasi e reitor da
Católica de Buenos Aires nomeados pelo Papa para o Sínodo da Família
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