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Os poetas oficiais e a pobreza cultural. Réquiem a Flávio Maia

Como é difícil atingir a notoriedade, tornar-se conhecido.

Conheço poetas que acham que a notoriedade advém da permanência, da constância, batalhando livro a livro a admiração do leitor.

Já velhos e todos cheios de si, continuam acreditando que são o suprassumo da literatura, da poesia.

Conversa fiada!

Muito cedo percebi como este ambiente "intelectual" se masturba órfão por "criações" que não terão continuidade, perpetuidade, seja lá o que for, morrerão, tão logo os seus "criadores" morrerem.

  Existem outros com boas obras, acadêmicas, bons conhecedores de literaturas, bons professores, mas maus escritores. Pensam igualmente que, por força de seus conhecimentos, serão igualmente bons de letras.

Também é um engano.

O pior, é que ocupam espaços inúteis durante décadas, impedindo as estrelas de brilharem naturalmente.

Fico a pensar...a sociedade merece a eles?
Certamente que não.

Por outro lado conheci escritores, poetas que morreram cedo sem serem conhecidos, com grandes virtudes, e colocando a letra na veia da vida, comungando palavra e ações ao mesmo tempo. Morreram jovens e desconhecidos. Provavelmente passarão pelo anonimato da sociedade.

Apenas estes, revolucionários, transformadores, sonhadores selarão um compromisso com a verdade.

No infinito, irreal, no sobrenatural, inimaginável, as edições rodam entre as estrelas com os versos perfeitos dos que foram esquecidos por sua época, para deleite dos libertados.

Destes, sobressai em meu passado universitário, um amigo para quem devo o compromisso de resgatar sua beleza perdida no tempo.

Trata-se de Flavio Maia.

Eram os anos de chumbo.

A cada dia prendiam um colega na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP.

Estudávamos nos barracões da Cidade Universitária.

De nossa turma de 1970 uns foram presos e torturados, outros suicidaram, outros simplesmente já morreram.

É o caso de Flávio.

Nem sei do que morreu, sei apenas que ao ligar para sua casa, um dia, meses depois de tê-lo visto pela última vez, na região da Paulista,  uma voz feminina, de senhora, surpresa, do outro lado, chorando, dissera que ele morrera.

Desliguei o telefone chocado.

Ainda não aprendera a chorar, de modo que a notícia provocou um hiato por anos, até dar-me conta da tremenda perda que tivera.

Flávio dizia-me, lembro-me, que sua obra era apenas uma, que se estendia por diversos livros.

Ele dava conta, antes que eu pudesse refletir, da limitação humana, da diversidade imensa do mesmo.

Estávamos em uma época em que a repressão endurecera bastante, e víamos nas drogas uma forma de contornar a situação, aliviar aquele sentimento de prisão em que vivíamos.

Recitávamos entre nós, na FFCL da USP nossos poemas nas semanas, nos intervalos das aulas.

Flávio sempre risonho, e com bom vozeirão, recitava como a descoberta de uma terra nova.

Mais tarde escreveu o seu livro PULSAÇÕES.

Deixo trechos deste livro para os meus leitores:

Mas o que busco?
Meu diário foi queimado.
Cálice que transborda solidão.
e me conduz à deriva
pelas ruas da cidade.

xxxx

Os homens e mulheres de minha rua passam
e me cumprimentam como
não houvesse um poeta em mim.
A eles interessa a minha contenção,
a gestualidade leve do aceno de mão,
o olho que perscruta sempre com discrição,
e a fugidia voz,
calcada de antemão.
Mas a você, concreta, louca de meus passos,
louca que atingiu meu cheiro, o corpo
(o homem que há neste poeta, enfim),
o que interessa além do beijo, do orgasmo, da mão?
O que interessa além do braço, do companheiro,
para habitar sua amplidão?

xxx

É tanto detalhe,
é tanto olho-mercúrio procurando a alma da noite,
o seu elam, que nós,
os que sucumbiram
mas soltaram o seu olhar na queda
e penetraram tudo: a terra, as plantas,
pingos d'água,
gelo, chuva,
já sabemos que o degrau não vale a porta,
que as escadarias não são mais do que um caminho,
simples turbilhão de passos,
conduzindo os nossos olhos a mais um teatro,
palco desconhecido onde seremos o oprimido,
o opressor, o que procura
o que não sabe, ou ainda tudo isso.

xxx


Flávio Maia permanece em meu coração sem imprensa, sem associações, projeções.

Permanece na limpidez de quem não se vendeu, não se adaptou, não se curvou,  não se tornou conveniente.

Sua morte precoce permanece em mim até hoje, no limiar do tempo.

Viva Flávio Maia!

Poeta dos esquecidos!

Comentários

Edmar Faco disse…
Joao Paulo, grande texto e homenagem ao amigo Flavio, poeta criativo e genial...
"...onde seremos o oprimido,
o opressor, o que procura
o que não sabe, ou ainda tudo isso."

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