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Adequação das doutrinas religiosas ao Estado Laico

Muito se tem discutido sobre os espaços que devem ser definidos entre as religiões e o Estado, nesta era globalizada em todos os sentidos.

As eleições passadas no Brasil colocaram o tema do aborto, que diz respeito à vida particular da cidadã, mas que é normatizada pelo Estado, ponto de encontro, ou desencontro (?) entre o Estado e as religiões.

Acabou assumindo importância principal, relativizando problemas como a miséria e a pobreza, que deveriam ser igualmente relevantes para as igrejas.

Este fator quase comprometeu a candidatura Dilma, blindada pela incrível aprovação da gestão Lula.

O interessante nisto foi o fato do aborto ter sido um assunto protelado e protelado, durante os oito anos do Governo Lula, nunca chegando a ser questão política de primeira ordem, indicando ser um transplante virtual, para a realidade eleitoral, com evidentes intenções de favorecimento da candidatura da direita.

O recuo de Dilma mostrou o grau de poder que as religiões exercem ainda hoje sobre a opinião pública.

E, neste caso, o uso da internet foi fundamental para colocar a candidata na parede.

No final esta ação foi neutralizada, mas mostrou que deve haver planejamento prévio e posições claras nestas questões, quando se entra numa arena de batalha.

Lembram-se do ateísmo desintelectualizado de FHC diante do questionamento de Boris Casoi (ou Karloff?) que o levou à derrota?

Ora as religiões adentram em searas reivindicadas como exclusivas do Estado, ora o Estado intervém, porque o Estado não pede licença, em áreas específicas da vida religiosa.

O Chamado Estado Laico moderno, presente no mundo ocidental levou séculos para ser modelado, e ainda está em aperfeiçoamento.

Passou por Estados Teocráticos, onde o imperador era tido como deus, caso de Roma, adentrando na idade média em que a Igreja católica vai se fortalecendo e exercendo, em conjunto com os reis (representantes de Deus na Terra), o papel judiciário inexistente nos estados feudais, com a inquisição.

Há a eclosão do Estado moderno onde o protestantismo em conjunto com as burguesias nascentes reivindica espaços livres onde pudesse se organizar e crescer.

Este último fator favoreceu o surgimento do Estado laico, como o conhecemos hoje, onde há menos intervenção governamental na vida religiosa do cidadão, e vice-versa, maior independência do mesmo Estado, em relação às influências de igrejas.

O caso brasileiro é sui generis pois a Igreja Católica foi durante todo o Brasil Colônia e Império, dependente do Estado, que definia, através dos reis, a escolha dos Bispos e a abertura das Dioceses. A cumplicidade se completava com a onipresença da Igreja no estado brasileiro

Os sacerdotes entregavam tudo ao Estado que, por sua vez pagava o soldo aos membros da Igreja. Por desinteresse do Estado não eram abertos seminários, nem se incentivava o aumento do número de sacerdotes, lógico, por rzões econômicas.

Bulas foram redigidas desde antes da descoberta do Brasil, abarcando não apenas o nosso país, mas também a América espanhola, onde concediam progressivamente a autoridade do Estado sobre a Igreja, que lhe devia sujeição. Lembre-se do caso dos jesuítas que foram expulsos do Brasil, por defenderem, ao seu modo e a seu tempo, os índios. 

Exemplo clássico é o conflito entre o Padre Feijó, Regente, e o Papa, para a escolha do Bispo do Rio de Janeiro, onde a falta de acordo deixou a Diocese vaga por anos.

Ele, Padre Feijó, era membro da Igreja, mas por ser Regente do Governo Interino, podia escolher Bispos, poder que não teria como sacerdote. O conflito com o Vaticano foi inevitável.

A compreenção crescente da doutrina cristã da justificação pela fé pode ser vista, hoje, como a razão maior que leva à aceitação dos cristãos do Estado Laico, pois ela substitui, numa linguagem paulina, a necessidade da lei, uma vez que a lei, através da ação do Espírito Santo, já está gravada no coração do Homem Novo.

Se o Espírito Santo substitui a lei, a lei pode ser deixada para o Estado regulamentar. A doutrina paulina rompe com as leis, deixando este terreno aberto para o Estado definir.

Interessa a fé para a Igreja nascente. Neste sentido, a religião torna as questões de certo e errado questões de foro íntimo, pessoais, desvinculadas da presença do Estado.

Aparentemente isto, à época de São Paulo, podia ser visto como uma forma de convivência da Igreja nascente com o Estado Romano. Mas não; como o Império Romano era Teocrático, esta justificação pela fé em Cristo se chocava fortemente com a idolatria ao Imperador, o que levou a uma grande mortandade dos primeiros cristãos, colocados para os leões no Coliseu.

O surgimento da Igreja nascente rompe com as chamadas religiões dietéticas, cheias de regras de funcionamento, como era em Israel decadente sob o domínio romano.

As chamadas religiões morais, que existem exigindo mais regras de comportamento do que discernimento interior, são as que ainda hoje exercem domínio sobre os Estados onde elas existem, obrigando-os a realizar intervenções que deveriam ser delas somente.

Daí o apedrejamento de Estado, com respaldo de poderes judiciários religiosos, imiscuindo-se a religião no Estado.

Proibições de uso de vestimentas, de alimentação, etc. pertencem às religiões dietéticas que intervém no Estado moderno, retrocedendo-o ao mais antigo primitivismo, e chocando o mundo. Como não poderia deixar de ser, certas seitas cristãs no Brasil adotam estes critérios normalizadores para seus fiéis, postura nitidamente judaica, pré-cristã, e consequentemente adotam uma postura de intervenção no Estado, tendo, por exemplo, a bancada evangélica, que é uma aberração fundamentalista.

É mais fácil criar um deus de normas, para todos, do que escutar um Deus sem normas, somente no coração, em linguagem particular.

Por isso multiplicam-se as religiões moralizantes e dietéticas no mundo, tanto no Islamismo, quanto no Budismo, e até num falso cristianismo, pois é mais fácil definir o que o fiel dever ser e fazer, o que inevitavelmente leva à intervenção da religião no Estado, do que deixá-lo livre sob a ação do Espírito Santo, que não pode ser normatizado

Jesus Cristo, provavelmente, já tinha este discernimento entre Estado e Religião ao afirmar que se “desse a César o que era de César e a Deus o que era de Deus”.

Fico por aqui.

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