O Papai-noel que chorava

Num grande país, localizado numa região escarpada por montanhas elevadas e vales profundos, vivia um povo organizado e próspero. Conquistara uma pujança econômica, após séculos de subdesenvolvimento e submissão a nações mais ricas.

Seus habitantes haviam lutado durante séculos contra o atraso, que contaminara com a corrupção e a discórdia, toda a nação.

Houve confrontos e morte, e ao final, o mal foi sendo paulatinamente erradicado.

Para os viajantes chegarem lá era difícil, devido ao relevo, mas os governantes não colocavam obstáculos para quem desejasse instalar-se ou mesmo visitá-los; até incentivavam.

Embora considerassem suas conquistas preciosas, abriam o país para a vinda de gente de fora, acreditando que isto não alteraria o equilíbrio alcançado. Tinham abertura.

O crescimento econômico obtivera êxito, abrindo novos postos de trabalho, e ampliando o mercado interno. A fome diminuíra, e novos segmentos sociais ascenderam na escala social, ocupando espaços importantes de cidadania.

As manchetes dos jornais, não apresentavam mais apenas a prisão de peixes pequenos, mas estampavam também nas primeiras páginas, os grandes fraudadores do fisco indo para a cadeia.

A polícia invertera sua ação, sendo progressivamente respeitada pela população, que antes a via com desconfiança.

A educação, que fora um grave problema, devido ao sistema de bolsas, formava agora um bom número de técnicos, engenheiros, médicos e cientistas. Assim, o país foi formando uma mão de obra que começava a suprir suas necessidades.

A expansão da infra-estrutura e a preservação do meio ambiente também foram sendo equacionadas, ainda que a população precisasse desenvolver novos hábitos ambientais e de higiene.

Os novos rumos de crescimento, e a abertura para o mundo, entretanto, abriram uma fissura que poderia comprometer o todo o projeto nacional: tratava-se da dominação cultural, vinda do exterior. Os pensamentos vindos de fora, eram aceitos por muitos, e vistos com reservas por outros.

A religiosidade tornara-se multifacetada, descaracterizando símbolos antes tidos como naturais, confundindo a linguagem mística do povo.

O sistema democrático, tão desejado por décadas, mostrava falhas que favoreciam o retorno dos pensamentos retrógrados, pois o uso da máquina pública para beneficiar pequenos grupos, e a própria corrupção, sempre voltavam como doença crônica.

A mitologia nacional estava sendo proscrita, devido a esta invasão. O Saci-Pererê estava desmoralizado por ser perneta, não amedrontando mais as criancinhas nas histórias contadas antes de dormir, com seu cachimbinho de entortar a boca.

A Sucupira praticamente fora esquecida. Sua última aparição fora em Macunaíma. A Mula sem Cabeça se transformara em história de bêbado, e o Boi-tatá, bem, este ninguém mais sabia quem era.

A aculturação provocou uma amnésia nacional, com transferência progressiva dos festejos para outros tipos de hábitos, como a halloween, enaltecendo símbolos de morte, principalmente junto às crianças, que se fantasiavam de mortos-vivos, para pedir balas. Outras festas, consideradas tradicionais estavam perdendo seu significado, sendo tratadas de maneira superficial.

Poucos se incomodavam com estas mudanças. A maioria achava natural que valores, antes respeitados por todos, fossem sendo destruídos aos poucos, por considerá-los inofensivos.

Foi neste quadro que aconteceu um fenômeno inexplicável, que gerou uma discussão nacional.

Um país próspero, que não temia mudanças, começou a se defrontar com uma inusitada situação, com a qual nunca tinha passado. Afinal, haviam se enriquecido, tinham de tudo, não precisando prestar contas para ninguém do que faziam.

Algo começou a incomodar, ao final do ano, na preparação da festas de Natal.

Era tradição realizar um concurso para a escolha do Papai-Noel, e muitos pretendentes acorriam para disputar esta vaga, pela notoriedade que ela representava, e a remuneração que proporcionava.

O processo de escolha era sempre bem conduzido: profissionais obesos, barbudos, alegres e receptivos, disputando uma vaga diante de um comitê.

Os candidatos deviam apresentar-se paramentados com toda a vestimenta, fazer um pequeno desfile, assentar-se no trono e acolher algumas crianças chamadas, para simular um teste.

Assim aconteciam todos os anos, as escolhas. Por isso que, à princípio, ninguém deu atenção para o fenômeno.

Na preparação da festa Natal, depois de demorada escolha do candidato, quando tudo estava praticamente pronto, e as crianças já faziam fila para pedir os seus presentes, ocorreu um algo inexplicável.

Uma força invisível e silenciosa envolvia o Papai Noel, sem que ele percebesse. Toque inicialmente imperceptível, dando a impressão de ser um simples lacrimejar, conseqüência de uma vista cansada.

Entretanto, com o passar das horas, transformava-se num rio de lágrimas incontidas, comprometendo sua atividade, impedindo-o de ouvir as crianças, de falar e sorrir. Ao final, seus olhos permaneciam inchados.

Ficava ali, o Papai Noel, prostrado em sua cadeira real, com a cabeça pendida para o lado, escondendo das crianças o seu rosto inchado.

A fila parada e o tempo passando, logo provocaram reclamações.

Os pais estranhando este comportamento retiraram os filhos de perto, não entendendo o que acontecia. Apenas criticavam a falta de critério na escolha do candidato.

Como as reclamações aumentaram, encerraram de maneira antecipada o evento. Todos foram embora reclamando dos organizadores, e por extensão do governo.

Quando deixaram o local, e restaram apenas os organizadores à sós com o velhinho, perguntaram-lhe porque chorava.

- Não sei – respondeu - Não tenho vontade de chorar, mas as lágrimas não param...

Repetiram o evento no dia seguinte, e como era de se esperar, aglomerou-se um número ainda maior de pais e filhos para a visita. Novamente, aconteceu o mesmo problema das lágrimas, com a conseqüente interrupção da festa.

Como o problema persistia os organizadores não tiveram outra saída senão afastar o Papai Noel.

Interessante que, fora do atendimento ele não chorava, permanecendo apenas com os olhos avermelhados, mas bastava sentar-se no trono e colocar-se para receber as pessoas, e começavam as lágrimas.

Escolheu-se outro candidato para o cargo temporário de Papai Noel, e, surpresos, viram repetir-se a mesma situação.

Não havia explicação para o choro. E só acontecia quando estavam no trono.

Este fato gerou um questionamento em todos:

-Como é possível, -diziam- que o mesmo problema permaneça, mesmo trocando de Papai Noel?

Outros ainda investigavam - Por que choram somente quando ocupam a cadeira de Papai Noel?

Para não constranger pais e filhos, ambos foram afastados do convívio social, longe dos holofotes da imprensa, ávida de informações, e levados a uma das muitas grutas que existem nas montanhas da região.

Quando o terceiro Papai Noel também verteu lágrimas, o processo foi interrompido,

Lá os três passavam seus dias juntos, tentando entender as lágrimas e os olhos inchados, e o que isto significava.

Os governantes com isso resolviam o problema ao seu modo, tirando de cena os velhinhos chorões. Ocorre que tanta coincidência acabou gerando um burburinho estranho no país.

Uns achavam que era uma mensagem divina que não fora devidamente interpretada. Outros pensavam tratar-se de um golpe para desestabilizar a nação. Outros ainda imaginavam ser a propaganda de um novo produto a ser lançado.

O quadro era de impasse: o Natal se aproximando, o trono do Papai Noel vazio, as crianças cada vez mais inquietas, os pais questionando como fazer as crianças acreditarem em Papai Noel.

Estes, por seu lado, não encontravam respostas, aguardando na gruta alguma solução, vinda não se sabe donde.

A vida em solidão tornou-se uma experiência incomum. De personagens públicos, rodeados de toda espécie de pessoas, agora, discriminados e em exílio. Fato inicialmente difícil de aceitar foi, paradoxalmente, fornecendo-lhes consciência, e embora não eliminando o problema, tiveram a oportunidade de se examinarem melhor.

Foi quando aconteceram os primeiros sinais.

Uma manhã ao acordar, um dos velhinhos, disse aos demais ter ouvido, entre o sonho e o despertar, uma voz dizendo-lhe:

- Vai, vai, vai! Vai nascer! E o trono é meu!

Seus olhos naquele dia pareceram sãos, mas como ele não conseguira explicar aquela voz, no dia seguinte, voltaram a ficar inchados.

A mesma voz soou nos ouvidos do outro Papai Noel no outro dia, pouco antes do amanhecer, com a conseqüente sensação de cura. Como, novamente, não entendeu a voz, tudo retornava.

Informados, os dirigentes da nação, ofereceram uma recompensa para quem explicasse o sonho. Nada.

Aproximava-se o dia 25 de dezembro e a aflição aumentava cada vez mais.

Na véspera do dia 25, um eremita, que passava o dia isolado em orações, e habitava nas grutas próximas, em uma de suas raras aparições, ao passar pelo local, ficou sensibilizado com a tristeza dos bons velhinhos.

- Por que vocês estão tristes e vivem nesta gruta? – perguntou.

- Nós fomos escolhidos para representarmos o Papai Noel na cidade, mas sempre que sentávamos no trono, para receber as crianças, começava em cada um de nós, um choro que não parava. Só quando deixávamos o local é que as lágrimas sumiam.

- Eu não sabia a razão - disse um deles - pois não tinha vontade de chorar. Apenas chorava. Agora, eu sei que deve existir uma causa para estas lágrimas. Só que eu não consigo resolver esta charada. Estou seco de tanto chorar, sem ter sentido.

- Você sabe por que não sentiu o seu choro? – questionou o eremita.

- Se eu soubesse, já teria ido embora deste exílio que me foi imposto.

- Seu choro parece o de uma grande perda na vida. Se a gente aceita tudo o que não é importante, e faz todos aceitarem também, algo chora dentro de você. Algo autêntico, que ficou tão distante que não pode mais ser identificado.

- Você, por acaso, sabe o que está tão distante de você?- completou.

- Se eu soubesse, já teria saído deste exílio – respondeu o terceiro velhinho.

O eremita entristeceu-se com esta resposta. Pensara que uma luz já tivesse acendida no coração daqueles homens.

Aproximando-se, olhou para cada um como se estivesse criticando a ignorância, e completou.

- São vocês mesmos, que estão distantes de si próprios, e do verdadeiro sentido do Natal. Papai Noel precisa também nascer de novo!

Vejam! Contra a vossa vontade, o espírito de cada um de vocês chora a ausência do Criador, por todas as vezes em que dele estiveram distantes. E é tão fácil ficar distante, não é?

Tudo convida a agir sozinho. Porém, como o nosso espírito mantém o desejo de unir-se a Deus, ele provoca as lágrimas que estranhamos, pela ausência que sente.

- Ah... – retrucaram uníssonos – Existe alguém dentro de nós que sente o que nós não sentimos?

Nossos sonhos diziam que alguém iria nascer...Será este o nascimento que o sonhos se referem, tem a ver com nossas lágrimas?

- Sim, mas é um nascimento diferente, um nascimento interior, em vocês mesmos - acrescentou o eremita. Uma mudança que não lhes desfigurará, mas permitirá que percebam como ela está ocorrendo.

Fizeram um silêncio consentido.

Considerando ter falado o suficiente para um bom entendimento, o eremita esquivou-se deles, e voltou a refugiar-se em sua pequena caverna.

Aquela reflexão foi tornando claras as razões daquela situação. Descobriram, que na gruta não teriam chance de se libertar do problema. Assim, decidiram sair juntos em direção à cidade.

- A verdade está chegando! – gritavam juntos

Quem os via passar, seguia-lhes os passos, curiosos – O que descobriram afinal?

Dirigiram-se para onde estava o trono do Papai Noel, localizado ao final da avenida principal da cidade. Lá, existe uma escadaria e um caminho com tapetes vermelhos, no alto do qual fica um grande trono, que pode ser visto por toda a multidão

Enquanto descia, gritavam,

- O trono não é nosso! O trono é dele! – É como se uma consciência fosse tomando conta dos três conforme caminhavam. Uma alegria os embalava no trajeto.

Atônito, o povo foi se aglomerando, acompanhando-os em direção ao trono.

Aproveitando, pegavam seus filhos, pois ali encontravam a oportunidade de resolver a questão da escolha dos presentes de Natal.

Ao chegarem junto do trono, diante de uma multidão, todos notaram que seus olhos estavam curados, pois não choravam mais.

Curiosamente, nenhum dos três se sentou no trono, mas pediram que se buscasse uma imagem do Menino Jesus deitado, de aproximadamente uns 60 centímetros, enquanto aguardavam.

Ao trazerem a imagem, dando um grande suspiro de alegria, depositaram-na sobre o assento do trono. Fez-se, na multidão, um instante de silêncio de surpresa e de expectativa.

Em seguida, sentaram-se os três, ao lado daquela criança que estava para nascer, e admiraram-na.

Todos aguardavam o que aconteceria.

- Agora – disseram juntos – estamos diante do presente verdadeiro. O presente dos presentes. O que dá e o que tira, o que estava esquecido, mas que agora é lembrado.

- Crianças – completaram – venham todas aqui!

As crianças vieram em algazarra, gritando, rindo e lotando a escadaria.

- Peçam o que quiserem!

Todas gritavam ao mesmo tempo, de forma que não se entendia nada.

- Nós temos uma boa notícia para vocês – completaram – A partir de hoje vocês poderão pedir vossos presentes aos seus próprios pais, sem ter que procurar o Papai Noel, não é bom? Não é mais fácil?

- Entretanto, aprendam que vocês também podem dar presentes aos seus pais! Não é só pedir.

– Crianças! Vocês são os presentes para seus pais!

- Pais! Vocês são presentes vivos a seus filhos!

- Assim nunca mais ninguém precisará chorar!

Foi o primeiro Natal verdadeiro daquele país.

Todos perceberam que de fato, presentes, riqueza, educação, ou até mesmo melhores condições de vida, nada significavam para suas vidas, se elas estiverem fechadas em si mesmas.

Importa a união, a solidariedade, o amor mutuo.

Que adiantaria um país rico e progressista, se estivesse desfigurado? – diziam os velhinhos.

- E a figura, a imagem visível de Deus, que é o melhor presente para a humanidade, está presente na pequenina imagem do Menino Jesus – completaram.

Naquele dia, todos compreenderam porque eles choravam.

Reverenciaram, portanto, o nascimento de Jesus, que enxuga as lágrimas e enche de alegria a todos que o recebem como um presente.

Ele, o verdadeiro presente.

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