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A multidão dos abandonados à noite, no centro de São Paulo



Sexta-feira 12 de novembro, estive visitando o povo de rua na noite fria de São Paulo, em pleno centro da cidade.

A caminhada começou na Praça da Sé.

Logo encontro um galeguinho, e conversa pr'a cá, conversa pr'a lá, disse-me estar na rua há 27 anos.

Pergunto-lhe a idade. A resposta é rápida: 33 anos.

Concluo que ele viveu de alguma forma com os pais até os seis anos. Perguntei-lhe, novamente, se não sentia alguma frustração por não ter convivido com seus pais mais tempo.

Galego foi direto - Não sei como aconteceu, mas um dia, com seis anos sei que fui deixado em um orfanato. Não sei se foram meus pais , ou não. Nem sei porque isto aconteceu. Sei que eles já morreram.

Lá fiquei um ano, e fugi.

À partir daí vivi na rua durante 27 anos.

Mudei o assunto, percebendo o proselitismo de alguns pastores evangélicos que ficam na Praça da Sé até às 20 horas, sempre com um pequeno agrupamento ao seu redor. Perguntei-lhe o que achava disto.

Também foi enfático - Tem pastor aqui há mais de 15 anos na praça.

Às vezes eles brigam entre si gritando uns contra os outros enquanto pregam, com o povo vendo tudo.

Uma ocasião um "irmão de rua" xingou o pastor porque ele estava falando mal do povo de rua, de quem bebe, etc.

O pastor o empurrou.

Como na Praça tem muitos irmãos que ficam por ali, sentados, ao virem a agressão, foram em cima do pastor, que fugiu, e passou um bom tempo sem voltar para a praça, senão apanhava.

Segundo o galego, este pastor ficou rico só de pregar na Sé.

Quando ele vem fazer a pregação ele guarda o carro novo dele bem longe da praça, mas o povo já descobriu.

Vai fazer o quê?

A quantidade de pessoas que vive no centro é simplesmente imensa. Incontável.

São grupos de jovens que vivem juntos e se drogam juntos, com cola. Tem um comportamento irônico com tudo, e desprezam as pessoas, que são vistas como úteis ou descartáveis. Ficam fechados juntos. Vamos dizer assim: tem alguns irmãos de rua que tem atitude de pedinte, e outros não, que são maioria. Estes jovens vêem quem está fora do grupo, como pessoas de quem eles podem obter coisas.

Existem também adultos de todo tipo: idosos, moços, paraplégicos, grupos gays. As mulheres não formam grupo à parte. Estão, em geral unidas a um grupo. é muito difícil ver grupo só de mulheres. Existem grupos de crianças, e não são poucas



Quando cheguei na frente da Faculdade do Largo do São Francisco, impressionou a quantidade, pois eram muitos.

Ao chegar o primeiro carro com comida, deu uma correria, e logo formavam fila para receber o alimento.

Na Boa Vista e laterais, também é grande a quantidade de gente que se esgueira em busca de um canto onde a onda fria do vento noturno não os incomode.

Muitas vezes, ao visitar os irmãos de rua, tenho em mente a vontade de ajudá-los a superar esta condição.

Particularmente, nesta sexta-feira, não.

Pela primeira vez, senti que também devo respeitá-los em desejar continuar como estão.

Porque não?

Se tenho o direito de seguir minha via como quero, porquê eles não?

Porque não reconhecer a miserabilidade deles, e tratá-los como alguém com quem converso naturalmente, sem segundas intenções.

Não temos também a nossa miserabilidade?

Lógico que temos, e muitas.

E ninguém vem tentar mudar-nos, não é? Porque não deixamos.

Miserabilidade à parte, eles possuem, em um outro sentido mais interior, riquezas incontáveis, enquanto nós temos, explicitamente, vulgaridades incontáveis.

Ou seja, quem somos nós para acharmos alguma coisa destes irmãos de rua?

Somos os reis da cocada?

Somos mais miseráveis ainda.

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